Entrevista: Luciane Patrício fala sobre o papel das tecnologias sociais e a atuação da Divisão de Inovação e Tecnologias Sociais da UFF

abr 2, 2019Entrevistas

As tecnologias sociais são experiências que contribuem para resolver grandes problemas sociais. Podem ser projetos simples, complexos ou inovadores, mas o que eles têm em comum é a capacidade de transformar uma comunidade ou um grupo específico, atendendo a uma demanda social.

Neste sentido, a tecnologia pode ser classificada como social quando se propõe a atuar sobre um problema social; quando seus valores estão informados pelo desenvolvimento da sociedade, não do mercado, ou seja, quando a ideia de social se apresenta como alternativa ao capital; quando considera os saberes dos atores diretamente afetados com o problema; quando apresenta baixo custo, é sustentável, reaplicável ou ajuda na promoção da autonomia dos interlocutores envolvidos, sobretudo nos casos onde o acesso aos direitos está em jogo, dentre outras possibilidades.

A Universidade tem um papel importante nas dinâmicas que envolvem as tecnologias sociais, fazendo uso desse tipo de tecnologia para romper com a hierarquia dos saberes, de modo consolidar uma universidade mais inclusiva a partir do diálogo entre o “saber científico” e o “saber local”. Pensando nisso, a Divisão de Inovação e Tecnologias Sociais da Agência de Inovação da UFF (AGIR) surge com o propósito de dar suporte e auxiliar iniciativas desenvolvidas por toda a comunidade acadêmica que envolvam a temática. Nesta entrevista, a chefe do setor de Tecnologias Sociais da UFF, Luciane Patrício, explica um pouco da atuação do setor, a criação do Catálogo de Tecnologias Sociais da UFF, bem como as apropriações e conceitos em torno das tecnologias sociais. Luciane é também antropóloga, membro do corpo docente do Departamento de Segurança Pública da UFF e do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (DSP/INEAC).


Como surgiu a Divisão de Inovação e Tecnologias Sociais da UFF?

O nosso setor está situado na Agência de Inovação da Universidade Federal Fluminense (AGIR/UFF), como uma das esferas de trabalho desenvolvidas pela Agência. O setor de Divisão de Inovação e Tecnologias Sociais  foi criado em 2015, durante uma gestão da Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação, na qual o professor Roberto Kant de Lima era o Pró-Reitor. Enquanto setor, nosso objetivo é apoiar e incentivar projetos e iniciativas de Tecnologia Social (TS) desenvolvidas pela UFF ou com o seu apoio. Nosso trabalho consiste em articular pesquisadores, docentes, alunos e a comunidade acadêmica em geral em torno do tema.


Quais são as principais ações desenvolvidas pela Divisão de Inovação e Tecnologias Sociais da UFF?

Hoje nós atuamos em três importantes frentes: a pesquisa, a visibilidade e divulgação, e o Catálogo de Tecnologias Sociais da UFF. Quando eu assumi a chefia do setor em 2016, o maior desafio era entender mais sobre o que seriam as tecnologias sociais, ou seja, precisávamos estudar sobre o tema. Iniciamos um levantamento de bibliografias sobre as TS, buscando discussões no campo científico, bem como grupos de pesquisa e eventos relacionados à temática; também levantamos dados no campo das políticas públicas; na iniciativa privada, por entendermos, a partir desse estudo, uma aproximação muito clara das tecnologias sociais com o mercado, cujo termo que aparece como similar seria negócio social ou inovação social; e nas próprias iniciativas da UFF envolvendo TS, sendo que desta ação resultou o lançamento do nosso Catálogo de Tecnologias Sociais da UFF. Também desenvolvemos um trabalho constante voltado para divulgação de notícias, eventos e chamadas sobre TS no nosso site e mídias sociais, bem como produção de conteúdo e articulação de estratégias com intuito de darmos mais visibilidade ao nosso setor. Além disso, regularmente realizamos eventos como Fórum de Inovação e Tecnologias Sociais, Seminário de Inovação e Tecnologias Sociais, lançamentos dos Catálogos, que são atividades resultantes de demandas que vão surgindo.


Em que consiste exatamente o Catálogo de Tecnologias Sociais da UFF?

Esse ano de 2019 vamos lançar a terceira edição do Catálogo, que tem como objetivo reunir as experiências de tecnologia social e/ou inovações para o desenvolvimento social – em curso, em fase piloto ou já finalizadas – desenvolvidas pela UFF por meio dos seus docentes, estudantes ou técnicos-administrativos no âmbito de projetos de ensino, pesquisa, extensão e/ou inovação. As experiências são selecionadas por meio de Edital de Chamamento. O mapeamento, documentação e divulgação das informações busca dar visibilidade às experiências de tecnologia social desenvolvidas pela UFF, produzir registro e criar memória a partir das iniciativas registradas, dar publicidade às experiências, além de permitir que os produtos, processos, metodologias, serviços e técnicas mapeadas, possam ser objeto de reaplicação e intercâmbio.


Com todo esse levantamento e trabalho de pesquisa, o que concluíram como conceito de tecnologia social? De onde vem esse termo?

Alguns teóricos definem as TS como produtos, processos, metodologias, serviços e/ou técnicas replicáveis, construídas e desenvolvidas na interação e/ou cooperação com a comunidade, que representem soluções inovadoras voltadas para a transformação, desenvolvimento e/ou inclusão social. No entanto, ainda não há um consenso sobre seu conceito e seus significados e nós o entendemos como algo muito mais completo, o que se reflete numa polissemia do seu uso, com diferentes apropriações e sentidos, resultando em um conjuntos de valores que está agregado ao que se considera como tecnologia social. Com nossa pesquisa, descobrimos que o termo surge no terceiro setor e é utilizado para descrever experiências cujo objetivo volta-se para o desenvolvimento da sociedade. Evidenciamos também que é um termo utilizado como uma categoria política, voltado para uma ação política de determinados segmentos, apresentando formas alternativas ao capital social. Está relacionada ao mercado, mas é também uma tentativa de incidir sobre as trajetórias dos indivíduos, partindo de uma demanda social. Há quem acredite que é um nome novo para algo velho. Pode ser que sim, mas é um nome novo que surge como categoria política para pautar novas agendas.


Então, podemos dizer que necessariamente a TS está ligada à inovação e que há um ponto de convergência muito próximo ao mercado?

Normalmente a teoria da TS diz que está ligada à inovação, mas se você olha empiricamente não é tão simples assim. Acho que isso nos leva a uma discussão sobre o próprio sentido de inovação, sobre o que entendemos a partir desse termo. No nosso Catálogo, por exemplo, temos uma experiência coordenada pela Profa. Dra Ana Paula Mendes de Miranda, que é o Curso de Especialização em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública. O curso em si é uma inovação? Não. Mas uma metodologia reflexiva dentro de um curso direcionado para militares pode ser entendida como uma inovação, se partirmos do ponto de vista que é uma forma nova de se transferir conhecimento, distanciando-se da doutrina, a qual é comum em ambientes dessa natureza. Sobre a proximidade com mercado, é uma relação presente, já que TS nasce no terceiro setor, mas essa é também uma discussão que precisa ser complexificada. Na bibliografia internacional, a TS aparece atrelada à sustentabilidade ambiental e a uma ideia de inovação social, direcionada a problemas do mercado. Já no levantamento nacional, TS aparece voltada para responder ou minimizar problemas relacionados à redução da pobreza ou a atender direitos de grupos marginalizados.


No entendimento de uma definição das tecnologias sociais, você se referiu à identificação de um conjunto de valores que está agregado ao que se considera como TS. No que consiste esse conjunto de valores?

Articulando a teoria com a empiria, observamos que TS pode ser um termo amplo e guarda-chuva para muitas questões, mas é também um termo que carrega valores que se complementam e se entrelaçam. “Construída a partir de saberes locais” é algo que aparece muito forte em muitas experiências, apesar de algumas não possuírem envolvimento forte com os saberes locais. Pode produzir um produto para o mercado? A bibliografia diz que não, mas a empiria diz que sim. Então há essa possibilidade. Responde a uma demanda da sociedade? Normalmente sim, mas precisamos colocar em questão o que estamos entendendo por sociedade, às vezes pode ser um grupo muito específico. Responde a uma problema social? Normalmente sim, mas há um problema de reconhecimento social. Outro valor bem importante é a aproximação entre o conhecimento tradicional e o conhecimento científico, que está diretamente ligado ao papel da universidade diante da sociedade, que tem como pano de fundo uma “prestação de contas”. Nesse sentido, podem ser encaixadas em TS ações de ensino, pesquisa, extensão e inovação.

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